Não é de hoje que o conceito de governança se dissemina como mantra entre acadêmicos e, sobretudo, burocratas e dirigentes no setor público. Trata-se de um dos típicos conceitos mágicos da administração[1], pois sua interpretação ambígua e carregada de juízo de valor que muitas vezes induz a visão ingênua de se obscurecer ou mesmo negar conflitos entre interesses e lógicas diferentes, que naturalmente permeiam os processos das políticas públicas em contexto democrático. Como efeito, visões simplórias e maniqueístas predominam, ou seja, se a organização ou política pública é ineficiente, burocrática e corrupta é culpa da ‘má’ governança, em outro extremo, se for transparente, efetiva e sustentável é graças à ‘boa governança’.

A confusa panaceia se prolifera nos esforços de caráter normativo-prescritivo e, principalmente, com interpretações vagas e imprecisas sobre o entendimento e aplicabilidade dos dois pilares de governança, i.e., direcionamento (steering) e prestação de contas e responsividade (accountability). É justamente o bom equilíbrio esses dois pilares que tende a determinar o sucesso de um bom arranjo de governança, algo muito desejado mas nem sempre alcançado na administração pública.

Não obstante, a questão se torna problemática, não pela diversidade conceitual em si, mas sim pelas tentativas de resolução da situação por meio da simplificação, muitas vezes exagerada do conceito, sem o devido embasamento teórico e rigor metodológico. Essa confusão conceitual não é exclusividade nacional, uma vez que é comum, tanto nos governos e organismos multilaterais quanto na academia, coexistirem visões que nem sempre são convergentes.

No Brasil, esse fenômeno se reflete, por exemplo, no Decreto 9.203 de 2017 de 22 de novembro que, ao reduzir a governança pública apenas a mecanismos de liderança, estratégia e controle se fundamenta em uma definição excessivamente restritiva e estática do termo, além de não incorporar os avanços contemporâneos desse debate. Essas dimensões são importantes, porém não são as únicas para o bom funcionamento do setor público. Por exemplo, limitar o foco em ‘liderança’ negligencia o fato de que os arranjos das políticas públicas, cada vez mais plurais e complexos na democracia, dependem de esforços colaborativos e cooperativos (e também conflitivos) de variados atores e organizações e não apenas na capacidade individual de um gestor. Do mesmo modo, não é factível afirmar que a ‘estratégia’ é estática e resultante apenas da intencionalidade de um líder pois, na prática governamental, trata-se de um processo dinâmico marcado por contingências e mudanças de cunho político, social, econômico, tecnológico etc., que obrigam os dirigentes constantemente a aprender e adaptar suas preferências e decisões.

O ímpeto reducionista também se observa em processos de isomorfismo na construção de indicadores de ‘boa’ governança que comparam e ranqueiam organizações díspares do ponto de vista de complexidade de missões, competências e, principalmente, capacidades financeiras e operacionais[2]. Esses indicadores são criticados não apenas por compararem ‘bananas com laranjas’, mas também por não possuírem modelos teóricos válidos que os sustentem, além de equívocos metodológicos e “ginástica estatística”, o que normalmente geram problemas de falta de consistência, correção e replicabilidade nos seus usos[3].

Como agravante, vem surgindo como uma nova ‘onda’ a incorporação das estratégias ESG, sigla em inglês para Environmental, Social and Corporate Governance (ambiente, social e governança corporativa), para dentro do debate de governança no setor público. Embora seja uma agenda valorosa como um esforço de autorregulação dos mercados, vale lembrar que essas responsabilidades foram institucionalizadas e são cotidianamente executadas dentro da esfera pública. Por essa razão, cabe justamente aos ministérios sociais, ambientais, agências reguladoras e órgãos de controle fomentar, regular, supervisionar e sancionar as empresas privadas em relação a essas dimensões, incluindo as práticas de sustentabilidade, gestão transparente e integra, garantias de segurança no trabalho e promoção da diversidade.

Sem dúvida, causa certa estranheza imaginar o Ibama sendo cobrado por ações sustentáveis ou a Funai por medidas de inclusão social. Entretanto, como ainda não há clareza sobre o que esse debate significa na prática, isto é, de quem e como essas questões serão medidas e analisadas no âmbito das competências e ações governamentais, é fundamental uma discussão qualificada para se evitar as confusões e os riscos em termos de recomendações indevidas e simplificadas de realidades complexas e assimétricas do setor público, como ocorreu no Decreto 9203/2017.

Portanto, qual seria o caminho mais realista e produtivo a seguir? Um primeiro passo, já em andamento no governo federal, consiste na reformulação do Decreto de governança, de modo a substituir a já superada perspectiva de ‘receita única’ (one-size fits all model) para todas as áreas e funções estatais, que tende a gerar efeitos negativos como a reprodução de desigualdades entre organizações e as comparações indevidas que não consideram as assimetrias de capacidades e as particularidades de diferentes políticas. Para tanto, a proposta de mudança se direciona para uma visão abrangente e atualizada de governança pública que valorize novos princípios e diretrizes, como inclusão, equidade, participação social e colaboração.

Outra alternativa promissora é transferirmos as atenções da tradicional abordagem hierárquica (top-down) para algo mais próximo da denominada governança experimentalista, entendida como ‘máquina para aprender com a diversidade’[4]. Em linhas gerais, essa nova perspectiva, mais adequada a cenários de incertezas e de heterogeneidade de interesses e poder, consiste na construção de diferentes arranjos de governança pautados em processos contínuos de adaptação e tentativa-e-erro com base em monitoramento e avaliação dos resultados das políticas públicas.

Por fim, para captar o dinamismo do conceito e das práticas relativas à governança uma alternativa é focar na valorização de experiências de sucesso nos moldes do programa Global Innovation Trends[5] da OCDE. A partir de uma premiação anual, essa organização analisa as tendências inovadoras pelo mundo, seleciona as mais recorrentes e promissoras e dissemina as boas práticas. Essa iniciativa pode trazer bons frutos, uma vez ajustada à realidade das diferentes áreas e esferas governamentais no Brasil.

Em síntese, o desafio de superar as confusões e implicações que a visão hegemônica tem trazido não é nada trivial, todavia, contribuir para aprimoramento e à efetividade das ações governamentais requer uma estratégica ampla, cooperativa e persistente que abrace a complexidade e as diferentes especificidades das organizações públicas. E o mais importante: inverter o foco dessa agenda. Em vez de se propagar normas, modelos e indicadores prescritivos e idealizados de governança pública, o mais recomendado é enfatizar no diagnóstico e na construção de capacidades para gerar casos de sucesso nas políticas públicas que harmonize os pilares da accountability democrática e direcionamento gerencial.

Notas

[1] Hupe, P.; Pollitt, C. The magic of good governance. Policy and Society, v. 13, n. 5, p. 641-658, 2010.

[2] Cavalcante, P.; Pires, R. Governança Pública: das prescrições formais à construção de uma perspectiva estratégica para a ação governamental. Boletim de Análise Político-Institucional, v. 1, p. 19-15, 2018.

[3] Andrews, M. The good governance agenda: beyond indicators without theory. Oxford Development Studies, v. 36, n. 4, p. 379-407, 2008.

[4] Sabel, C.; Sabel Z. Experimentalist Governance. In Oxford Handbook of Governance, edited by David Levi-Faur. Oxford Handbooks. Oxford, UK: Oxford University Press, 2012.

[5] Para mais informações, ver https://oecd-opsi.org/work-areas/innovation-trends/.

Por Pedro Cavalcante, Doutor em Ciência Política (UnB) e Professor do mestrado e doutorado em Administração Pública no IDP e Enap

Publicada originalmente no Estadão

Publicado na CompliancePME em 14 de julho de 2023