Se não podemos mais salvar a vida do João Alberto Freitas, 40, morto por seguranças do Carrefour, podemos evitar outras tragédias, pois elas ocorrerão se o sistema não evoluir radicalmente.
O meu ângulo é o das empresas, onde atuei por mais de 30 anos. Aprendi que é hora de trabalharmos para uma nova governança corporativaÉ o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e..., que seja mais inclusiva.
Este é o momento porque pesos pesados, como presidentes-executivos de empresas dos EUA e da Europa, confiam que é preciso um novo capitalismo, chamado “Stakeholder Capitalism”. Nele, as diversas partes interessadas são incluídas na decisão, para gerar resultado sustentável ao acionista.
O “Stakeholder Capitalism” está, na minha opinião, à frente do ESGESG é uma sigla em inglês para “environmental, social and governance” (ambiental, social e governança, em português). Geralmente, ela é usada para se referir às práticas ambientais, sociais e de... (boas práticas ambientais, sociais e de governança), pois representa todos os interessados, enquanto o ESG está, em muitas empresas, concentrado em finanças.
Para colocá-lo em prática, os líderes devem ser conscientes das corresponsabilidades de suas empresas na solução de problemas imprescindíveis, como o racismo estrutural, a emergência climática e a desigualdade social, entre outros. Em segundo lugar, devem evitar a conveniência da superficialidade. É preciso fazer o que se fala, mudar a casa primeiro. Os instrumentos são a nova governança inclusiva e as suas métricas.
Satya Nadella, presidente-executivo da Microsoft, em resposta ao Black Lives Matter, afirmou: “todos nós, começando por mim e pelos líderes sênior da empresa têm um papel a desempenhar. Não podemos acordar episodicamente quando ocorre uma nova tragédia. Um problema sistêmico requer uma resposta holística”.
Para o presidente-executivo da Danone, Emmanuel Faber, “o Stakeholder Capitalism é um fato, quer as empresas queiram ou não”.
Concordo com Alan Murray, presidente-executivo da Fortune, que diz que sem as regras de governança e contabilidade corporativa mudarem, a primazia do acionista reinará suprema. A contabilidade mudará em alguns anos, com as novas regras de emissão zero da União Europeia, Reino Unido, China e provavelmente dos EUA.
A governança é uma decisão da empresa, prática e com baixo investimento. Ela podia ter evitado o assassinato de João, pois antecipa todos os riscos e apresenta uma análise balanceada para presidentes e conselheiros. Ações simples como treinamentos e auditorias amplas e regulares, assim como um efetivo canal de complianceSubstantivo advindo do verbo to comply (agir de acordo, cumprir, obedecer). Estado de estar de acordo com as diretrizes ou especificações estabelecidas pela lei ou regras, políticas e procedimentos de... para empregados e terceiros, poderiam ter antecipado essa tragédia e outras anteriores a ela.
Ela marcará a vida dos familiares e amigos de João. Sem querer comparar o choque, ela se associará ao Carrefour no curto e longo prazo.
A governança também inclui uma ação conjunta e consistente. Enquanto a filial brasileira adotou o modelo de gestão de crise do século passado –terceirizou a culpa, demitiu funcionário, mas não se pronunciou sobre sua governança e corresponsabilidade, o presidente global do Carrefour, Alexandre Bompart, mostrou determinação ao afirmar que tomará medidas drásticas para evitar outras tragédias.
Hoje, os stakeholdersPessoas ou grupos de pessoas com algum grau de envolvimento ou interesse em uma organização ou entidade, tais como empregados, clientes, fornecedores ou cidadãos que podem ser afetados por determinada... dividem suas opiniões nas mídias sociais e fóruns. Um fato relevante, ou uma tragédia como essa, mobiliza a opinião de todos em torno de uma imagem comum da empresa. Porém, os presidentes e conselheiros continuam recebendo informações fragmentadas de seus diversos departamentos, deixando de fora de sua decisão informações críticas e análises ponderadas.
Stakeholders atendidos aumentam a competividade na obtenção de melhores créditos, a atração e retenção de empregados comprometidos, a lealdade e percepção de valor dos clientes e as chances de sentar lado a lado com pessoas, comunidades, imprensa, ONGs e governos.
As métricas para o Stakeholder Capitalism existem. O Fórum Econômico Mundial apresentou as suas, organizadas pelas quatro grandes (Deloitte, EY, KPMG e PwC) a partir dos padrões do GRI, Global Reporting Initiative. São quatro pilares: governança, planeta, pessoas e prosperidade. Prova de que a governança inclusiva, de stakeholders, vem em primeiro lugar.
Outro caminho é a certificação B-Corp, que equilibra propósito e lucro. As empresas certificadas são legalmente obrigadas a considerar o impacto de suas decisões sobre seus funcionários, clientes, fornecedores, comunidade e meio ambiente. Há centenas de empresas certificadas no Brasil, pequenas, médias e grandes. As B-Corps brasileiras estão no comércio, agronegócio, consultorias, agências de viagens, bens de capital e de consumo, entre outros setores.
É uma questão de decisões. As erradas, infelizmente, levaram à morte de João.
Por Guilherme Athia, Palestrante, mentor e desenvolvedor da Stakeholder Relations Org, em Bruxelas.
Esta notícia foi publicada originalmente na Folha