O debate a respeito do relacionamento entre empresas e direitos humanos não é novo. Pelo contrário, desde 1970, estas reflexões são recorrentes, culminando com o surgimento dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, endossado pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em 2011, para orientar Estados e empresas na responsabilização pela proteção e promoção de direitos humanos.

Embora tais princípios não sejam globalmente vinculantes, no Brasil os casos de violação à direitos humanos são inúmeros, tendo registrado, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego[1], o maior número de denúncias de pessoas submetidas à condição análoga à escravidão, com 3.100 pessoas contabilizadas.

Ademais, segundo relatório global do último mês de abril divulgado pela Anistia Internacional, no Brasil seriam mais de 3,4 milhões de possíveis violações em direitos humanos apenas no ano de 2023, indicando um aumento de 41% em relação às denúncias registradas em 2022[2]. Em termos globais, 46% das maiores companhias do mundo tiveram dificuldade em demonstrar evidências quanto à identificação ou mitigação de questões ligadas à direitos humanos[3].

Não à toa, a União Europeia, através da Diretiva de Devida Diligência de Sustentabilidade Corporativa (CSDDD), aprovada em abril passado pelo Parlamento Europeu, tem buscado liderar esforços para assegurar que as operações comerciais transnacionais respeitem padrões socioambientais e de direitos humanos mais robustos.

Paralelamente à aprovação continental, alguns países da União Europeia iniciaram processos legislativos para aprovação de leis que, dentre outros objetivos, visavam adotar critérios de devida diligência, como Reino Unido, França e Alemanha, com requisitos de devida diligência variáveis em suas legislações. Como resultado deste número cada vez maior de leis de devida diligência diversas pelos Estados-Membros da UE, houve a adoção da versão final da CSDDD, promovendo uma maior unificação de exigências legais, além de requerer que os países integrantes do bloco, em um prazo de dois anos, transponham tal diretiva para seus territórios.

Na França, os efeitos da Lei do Dever de Diligência (Lei 2017-399) sobre as 20 maiores companhias francesas foi enorme: antes da promulgação deste normativo, o Shift Project[4], através de análise minuciosa do relatório de direitos humanos destas empresas, indica que a maioria não atendia às expectativas dos Princípios, ao passo que após dois anos de vigência desta legislação, ainda que os relatórios não estejam maduros suficientemente, aparentemente os requisitos da Lei do Dever de Diligência tem pressionado tais empresas a melhorar a governança e identificação de riscos, demonstrando um melhor alinhamento aos Princípios.

Quanto ao Reino Unido, as instituições têm sido encorajadas para respeitarem os direitos humanos, mas, conforme aponta o Business & Human Rights Resource Center[5], ainda existe um ambiente onde a combinação de abordagens voluntárias e leis brandas tiveram pouco efeito prático, indicando que um novo ato normativo seria necessário para evitar riscos de direitos humanos em suas operações ou cadeias de suprimentos, e que a devida diligência seria um meio vital para garantia que as companhias se concentrassem nos riscos mais relevantes aos direitos humanos.

Igualmente, no Brasil, o PL 572/2022 pretende ser o Marco Civil de Direitos Humanos e Empresas, estabelecendo diretrizes para a devida diligência na cadeia produtiva, e, consequentemente, se propondo a ser um passo crucial na promoção de práticas empresariais responsáveis e na introdução de mecanismos de prevenção de situações de trabalho escravo contemporâneo.

Na justificação para aprovação deste PL, os parlamentares alegam que existe uma grande dificuldade de responsabilização das empresas pelas violações aos direitos humanos atribuída à falta de um diploma legal unificado, que venha a suprir algumas destas brechas e facilitar a aplicação pelo Judiciário.

Todavia já surgem vozes antagônicas à aprovação do PL, dada a previsão de sanções “pesadas”, como a interdição ou suspensão das atividades; perda de bens, direitos e valores que possam ter sido obtidos a partir das violações produzidas; proibição de recebimento de incentivos e contratações com o Poder Público; pagamento de multa; ou a dissolução compulsória da entidade, embora a opção de não ação, ou seja, a não aprovação do PL, seria catastrófica para as pretensões brasileiras de se igualar às experiências estrangeiras, que, embora não se mostrem totalmente exitosas, ao menos, serviram como marco legal que contribuiu para o amadurecimento da pauta nos respectivos países.

Seja qual for o resultado do processo legislativo brasileiro, este cenário mundial demonstra uma mudança de posicionamento dos Estados que, historicamente, representavam requisitos em caráter mais voltado ao soft law, e, agora, uma maior incidência da hard law, revelando a ocorrência de um novo paradigma: as empresas devem ir além do compliance.


[1] UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Brasil registra maior número de denúncias de trabalho escravo; professor Otavio Pinto e Silva analisa o problema. Disponível em: https://direito.usp.br/noticia/a55f772d503a-brasil-registra-maior-numero-de-denuncias-de-trabalho-escravo-professor-otavio-pinto-e-silva-analisa-o-problema. Acesso em: 20 jun. 2024.

[2] G1. Brasil registrou 3,4 milhões de possíveis violações de direitos humanos em 2023, diz relatório da Anistia Internacional. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/04/24/brasil-registrou-34-milhoes-de-possiveis-violacoes-de-direitos-humanos-em-2023-diz-relatorio-da-anistia-internacional.ghtml. Acesso em: 23 de jun. de 2024.

[3] WORLD BENCHMARKING ALLIANCE. Corporate Human Rights Benchmark. Disponível em: https://www.worldbenchmarkingalliance.org/corporate-human-rights-benchmark/. Acesso em: 17 jun. 2014.

[4] SHIFT. How to Write a More Meaningful Update Report Under the French Duty of Vigilance Law. Disponível em: https://shiftproject.org/wp-content/uploads/2019/11/Shift_HumanRightsReportinginFrance_Nov27-1.pdf. Acesso em: 18 de jun. de 2024.

[5] BUSINESS & HUMAN RIGHTS RESOURCE CENTRE. The case for human rights due diligence laws in the United Kingdom. Disponível em: https://www.business-humanrights.org/en/big-issues/mandatory-due-diligence/the-case-for-human-rights-due-diligence-laws-in-the-united-kingdom/. Acesso em: 20 de jun. de 2024.

Jean Marc SassonHead de Regulação e Novas Tecnologias & Ambiental, Mudanças Climáticas e ESG do Lima ≡ Feigelson Advogados
Thiago Henrique Bueno Vaz – Regional Compliance Officer e responsável pelo Departamento Jurídico na Mann+Hummel. Graduado pela PUC-Campinas e MBA em Gestão e Business Law pela FGV

Disponível originalmente no Jota. Publicado na CompliancePME em 29 de julho de 2024