No atual contexto de evidente retrocesso no combate à corrupçãoEtimologicamente, o termo corrupção surgiu a partir do latim corruptus, que significa o "ato de quebrar aos pedaços", ou seja, decompor e deteriorar algo. É o ato ou efeito de... no Brasil, uma novidade na legislação nacional traz motivos de celebração: a nova lei de licitações (Lei Federal nº. 14.133/21) entrou em vigor com instrumentos modernos de prevenção à corrupção. Não era tudo o que os especialistas em complianceSubstantivo advindo do verbo to comply (agir de acordo, cumprir, obedecer). Estado de estar de acordo com as diretrizes ou especificações estabelecidas pela lei ou regras, políticas e procedimentos de... anticorrupção queriam, e há claro espaço para evolução no futuro. Didaticamente, apresento os pontos fortes e os equívocos da nova lei de licitações a seguir.
Já dissemos em outras oportunidades que a corrupção não se combate apenas com persecução penal que, embora importante, não se sustenta sozinha ao bastar-se para enxugar gelo eternamente. É preciso criar um sistema assertivo de prevenção ao suborno para que esse mal sequer veja a luz do dia em situações em que seja possível impedi-lo.
Essa linha de entendimento não é recente, e vem das convenções internacionais de combate à corrupção que o Brasil é signatário e que dispõe tanto sobre ferramentas de transparênciaÉ o que se pode ver através, que é evidente ou que se deixa transparecer. É a virtude que impede a ocultação de alguma vantagem pessoal. nas contratação públicas quanto o fomento à integridadeConjunto de escolhas que estejam em sintonia com as crenças pessoais e os valores da empresa, prezando pela ética nas tomadas de decisões. ao setor privado, nomeadamente as convenções da Organização dos Estados Americanos (OEA), 1996; da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico(OCDE): no combate mundial à corrupção, a OCDE desempenhou papel importante pois seus Estados membros firmaram a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais... (OCDE) de 1997 e, mais recentemente, da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2002.
Nesse sentido, uma das melhores ações no fomento à integridade junto às empresas que contratam com poder público é o incentivo à implementação e aperfeiçoamento dos Programas de Integridade ou de compliance, presentes na nova lei de licitações. Quanto aos Programas de Integridade, são quatro as novidades a serem celebradas na Lei Federal nº. 14.133/21, senão vejamos:
- 1) No caso das contratações de grande vulto – aquelas acima de R$ 200 milhões de reais – os Programas de Integridade são obrigatórios ao licitante vencedor, a ser implementado no prazo de seis meses da celebração do contrato administrativo (art. 25, § 4º);
- 2) Em caso de empate entre duas ou mais propostas, um dos critérios de desempate é o desenvolvimento pelo licitante de Programa de Integridade (art. 60, IV);
- 3) No caso da aplicação de sanções administrativas, será considerada como atenuante a implantação ou aperfeiçoamento de Programa de Integridade (art. 156, § 1º); e
- 4) Uma vez responsabilizado administrativamente, cabe ao licitante ou contratado reabilitação, condicionada – em alguns casos – à implementação ou aperfeiçoamento de Programa de Integridade (art. 163, parágrafo único).
Em todos esses casos, caberá aos órgãos de controle interno (como a Controladoria-Geral da União, no âmbito do Poder Executivo Federal) editar normas e orientações e sobretudo avaliar a adequação e eficácia dos Programas de Integridade dos licitantes ou contratados em cada uma das hipóteses acima.
Outra novidade premiada da nova lei diz respeito à responsabilização administrativa de licitantes ou contratados que pratiquem quaisquer dos atos lesivos contra a Administração Pública previstos na Lei AnticorrupçãoLei nº 12.846 / 2013): Conhecida como a Lei Anticorrupção e , no exterior , como The Clean Company Act ( Lei da Empresa Limpa ) promulgada em 1º de agosto... (art. 155, XII), indo além das condutas típicas de fraudes a licitações conhecidas na antiga lei de licitações (Lei Federal nº. 8.666/93).
Um último fato que vale menção honrosa é a criação do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), que além de centralizar dados, registros e sistemas (big data), passa a incorporar o acesso ao Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) e ao Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP), dois bancos de dados importantes para as futuras realizações de due diligenceInvestigação com o intuito de se conhecer melhor uma determinada instituição, verificando - se todas as informações disponíveis sobre ela geralmente para se avaliarem riscos de uma transação ou qualquer... que impedirão a contratação de empresas suspensas ou punidas.
A nova lei de licitações, entretanto, também perdeu a oportunidade de avançar ainda mais na prevenção à corrupção. Cito quatro pontos aqui.
- 1) A obrigatoriedade dos Programas de Integridade só vale para licitações acima de R$ 200 milhões, provavelmente por alegar certa dificuldade em operacionalizar um sistema de compliance por empresas menores. Esse é um mito que precisa ser desconstruído por ser completamente inverídico. A implementação de programas de integridade é cada vez mais acessível, inclusive a microempresas ou aquelas de pequeno porte. E seus benefícios são imensos;
- 2) A punição das condutas mais graves ainda é tratada na seção sobre crimes – que até tiveram suas penas aumentadas – os quais não se aplicam à pessoa jurídica que se beneficia da conduta ou que determina a prática do delito. Caberia uma visão mais moderna, oriunda do Direito Penal Mínimo, que premia a prevenção corporativa ao mesmo tempo em que gera punição mais assertiva;
- 3) A multa aplicada nos casos de responsabilização administrativa se dá apenas quanto ao inadimplemento contratual, e seu quantum é estabelecido a partir do instrumento convocatório ou limitado ao valor do contrato administrativo – uma enorme diferença em relação ao instituto da multa contabilizada a partir do faturamento bruto do ano anterior estabelecida na Lei Anticorrupção (Lei Federal nº
. 12.846/13), muito mais eficaz na prevenção de delitos contra Administração;
- 4) A avaliação da adequação e eficácia dos Programas de Integridade pelos órgãos de controle interno tende a se mostrar um fardo muito pesado, sobretudo pela carga excessiva de trabalho desses times. Ademais, a tarefa é bastante especializada e poderia ser delegada à iniciativa privada, que funcionaria como auditorias externas independentes, cabendo aos órgãos de controle a supervisão. Há iniciativas muito interessantes nas certificações de compliance antissuborno, como a ISOA Organização Internacional de Normalização ou Organização Internacional para Padronização, popularmente conhecida como ISO é uma entidade que congrega os grémios de padronização/normalização de 162 países.... 37001, exigidas atualmente das empresas que assinam acordos de leniência com a União.
Por fim, vale relembrar que o Poder Público pode e deve fomentar a integridade do setor privado, sem entretanto deixar de fazer a lição de casa. Não é razoável exigir ao privado ações que a própria Administração Pública não implementa. Nesse sentido, é ainda tímido o avanço de institutos de compliance público nos órgãos de poder dos três entes federativos. É uma questão de coerência.
Daniel Lança é advogado, Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e sócio da SG Compliance. É Professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC) e foi um dos especialistas a escrever as Novas Medidas contra a Corrupção (FGV/Transparência Internacional)
Esta notícia foi originalmente publicada na Veja